"Falar da obra de João Paulo Simões é um exercício, por si só, convidativo à reflexão e à auto-reflexão. Passando pela realização de documentários, videoclipes, vídeos de caracter promocional e, sobretudo, pela realização de filmes de ficção onde a marca eclética é paradigma, deparamo-nos com um longo e interessantíssimo percurso profissional e, na minha perspectiva, de evolução na procura e cogitação acerca da condição humana. Na sua obra ficcional, encontramos um tronco comum em cujo âmago se constitui um manancial de questões acerca do sentido da existência, remetendo-nos para uma dialéctica de natureza filosófica, onde a metafísica se encontra quase sempre presente.
Nos seus filmes, parte-se de um dado estado de espírito e vivência existenciais em que desafios e aprendizagens múltiplas ocorrem ao longo dum percurso, com o intuito de se chegar a um nível de vivência mais profunda e de significados redimensionados. É aqui que se coloca a referida questão do sentido da vida, procurando ultrapassar e transcender as aparências imediatas e levar o espectador a refletir sobre a dimensão primordial do individuo.
João Paulo Simões nas filmagens 
de Dam Mast Qalandar
João Paulo Simões exprime-se, na sua obra multifacetada, com um código onde o acontecimento e a percepção se desdobram numa troca recíproca entre o corpo vivido e o mundo animado, sendo estes altamente articulados, valorizando a experiência perceptual numa estrutura coerente que encarna uma lógica de acção que parte do interior para o exterior, dando suporte e destaque à experiência sensorial. Sabendo da sua paixão por Bach, não deixo de encontrar aqui uma ponte entre a fenomenologia da percepção, o que, quanto a mim, revela a fidelidade humanista de João Paulo Simões contra todas as formas de alienação.
Utilizando a linguagem cinematográfica como instrumento de conhecimento e comunicação, João Paulo Simões utiliza cenas metafóricas com imagens fortes cheias de sugestão, por vezes de carácter onírico e perturbadoramente alegórico, num ritmo peculiar onde, pela beleza da fotografia e do jogo entre sons (música/falas) e silêncio, ressalta a complexidade dos sentimentos.
Mercy (2012)
Duchess, Duchess (2004)
Nos filmes de João Paulo Simões deparamo-nos com enredos dotados de temas do foro do psiquismo, com uma forte componente existencialista e uma interessantíssima densidade psicológica, através de situações de intenso apelo emocional que permitem dissecar o conceito da verdadeira face dos indivíduos e a da sua verdade interior - aquela que se esconde sob máscaras - criando situações de alto valor para a análise das personagens.
Tenho encontrado na obra de João Paulo Simões reflexos de uma filosofia existencialista, implicando vitalmente o sujeito numa auto-reflexão que não se limita a uma objectivação abstracta da realidade, defendendo a irredutabilidade da existência humana relativamente a qualquer tentativa coisificadora, o que me remete para Kierkegaard quando este se referia à sua coragem para duvidar de tudo menos para reconhecer a dúvida da falta de coragem para nada saber.
Torpor (2004)
O mesmo parece estar presente ao longo das obras de João Paulo Simões, a definição da situação humana como ausência de garantia de tudo o que está no mundo.
Os prismas que usa são como que uma catarse, um processo terapêutico onde se liga o corpo com a alma, com as emoções e com a natureza, de modo a expandir a consciência pela experimentação e pela percepção.
Pela perspectiva de Nietzsche, por sua vez, dir-se-ia que potencia a valorização do acontecimento – feito de tensão entre o instinto e as múltiplas instâncias dos diversos mundos que nos atravessam. Neste âmbito, as sensações corporais e as múltiplas imagens e imaginações que povoam a psique individual e colectiva ganham destaque e ênfase na experimentação corporal e não apenas nas conjecturas intelectuais." - Olga Fonseca, 8 de Julho 2015;


“Entre este escriba e o João Paulo Simões existe uma geração de diferença.
Isto para vos dizer que conheci o João Paulo quando ainda seria suposto ter ele aspirações a astronauta, bombeiro ou maquinista de comboio (mas, á sua boa maneira, já dizia querer ser cineasta).
Depois nunca mais soube dele ou ele de mim. Foi para Inglaterra e eu fui para o Bairro Alto.
Crescemos ele por ali eu por aqui, ele por lá e eu por acolá.
Numa altura em que estava a desenvolver uma plataforma de produção , promoção e divulgação cultural “Sítio das Artes”, um amigo comum diz-me que o filho do João Simões está em Lisboa a terminar “Uma Curta de Amor” e se eu não queria “entrevista-lo”.
Iniciou-se uma troca de emails para combinar o dia da gravação e assuntos a tratar. Decidimo-nos por uma conversa em duas partes: começar por abordar o trabalho realizado e depois sobre a mais recente produção.
A coisa correu mal. O local foi mal escolhido e as imagens ficaram péssimas. Salvou-se um pequeno “gag” sobre moscas e Sharon Stone e aquilo que afinal, concluímos, realmente interessava: Hoje.
Uma Curta de Amor (2014)
São sempre gratificantes, as conversas acompanhadas com imperial à beira mar e de espectro muito abrangente. O cinema, os temas, os gostos pessoais, as razões de planos mais abertos ou fechados, tipos de iluminação até ao peito e decote generoso da mulher que acaba de passar junto à nossa mesa.
Outras destas “reuniões” foram acontecendo e consolidou-se a amizade e a vontade de trabalhar juntos..
Colaboramos na bem sucedida apresentação intimista de “Uma Curta de Amor” no Centro Nacional de Cultura e logo ficaram combinadas futuras cumplicidades
Depois o Sítio das Artes passou a Associação de Ideias, designação sugerida e oferecida pelo João Paulo.
Lisboa Involuntária vinha aí, havia a necessidade de uma equipa e por vezes as pequenas equipas tornam-se grandes … … porque sim.
A Parceria estava oficializada” –
Rui Geada, 9 de Julho 2015;

Entrevista

Rui Geada: Lisboa Involuntária, Alfama Monogatari, O Tempo e Dez Mulheres
Numa terminologia matemática, qual dos símbolos se poderá utilizar na relação entre estas obras: Contém - Está Contido – Implicação?  Justifique a resposta.

João Paulo Simões: Equacionar esses elementos seria como assistir a uma daquelas lutas femininas na lama: um tédio escorregadio em que a própria falta de perícia demonstrada se pode estender a nós (e não sairmos do mesmo). Mas, posso tentar apresentar-te uma fórmula, daquelas que poderiam deixar o mais brilhante físico iraniano a coçar a cabeça...
Lisboa Involuntária (2016)
Em Lisboa Involuntária cabe tudo (menos, talvez, egos em busca de protagonismo). É um filme que se predispõe a abranger a multiplicidade da essência marginal lusitana, mas onde a cidade prevalece. Nela, somos todos filhos bastardos de uma Revolução que muito prometeu, mas cujos valores foram sabotados por quem à sua maneira os re-interpretou num processo dito democrático.
O que mais contém? A autenticidade de zonas típicas de Lisboa, numa perspectiva mais documental. Foi durante parte das filmagens do projecto em Alfama, que o segundo elemento se formulou.
Lust (2012)
Há algum tempo que pretendia revisitar alguns dos temas e estética do Lust (filme híbrido que fiz em 2012 para Ithaka). Alfama Monogatari foi o título de um dos segmentos desse projecto que eu decidi canibalizar e dar nova forma (com novas personagens e contextos mais aprimorados). Queria também revitalizar o formato web-series, que havia começado a explorar em 2011 com Where Her Dreams End, mas que, por diversas razões, nunca passou do episódio-piloto. Em puro processo alquímico, as seis partes de Alfama Monogatari fizeram-me, por sua vez, conceber A Tale of Lust – uma curta-metragem de ligação entre o filme original e esta nova série (agora com produção adiada para 2016). Peguei assim em material que não fora incluído no “final cut” do Lust (protagonizado por Marta inocentes no segmento The Moral White) e construí uma narrativa mais elíptica, insular e claustrofóbica – em que o conceito de identidade e a duplicidade feminina recebem um tratamento denso e atmosférico.
As personagens centrais do filme são encarnadas por Anabela Gonçalves e Sandra Celas, que são também, respectivamente, a produtora e uma de dez protagonistas do terceiro elemento por ti referido.
A longa-metragem O Tempo e Dez Mulheres recebe aqui a sua primeira menção pública. Trata-se de um “calendário digital em filme”, dividido ou fragmentado em doze segmentos (associados aos meses do ano) e em que diversas noções de tempo são exploradas dentro da natureza cíclica da mulher.
O elenco de luxo vai incluír também Rita Frazão e Catarina Furtado – num papel que irá, sem dúvida, surpreender. Vamos “testar as águas” com a produção de dois segmentos iniciais.


Imogen Meets The Merchant (2001)
Olga Fonseca: Na tua obra encontramos manifestações de duas faces (digamos assim): uma retrospectiva e outra prospectiva. Numa lógica existencialista (que encontro nos teus trabalhos), enquanto a primeira diagnostica o que o Homem é, a outra revela uma possibilidade para um caminho ideal. Concordas com esta minha análise?

João Paulo Simões: Concordo, no sentido em que me interessará sempre colocar mais questões do que ter a pretensão de fornecer respostas. Perguntam-me muitas vezes porque me centro tanto no lado mais sombrio da existência humana. Se isso não será um reflexo de algum negativismo pessoal ou mesmo uma falta de fé no ser humano. A verdade é que me interessam explorar contextos extremos e abismos psicológicos precisamente por ter fé naquilo que poderemos ainda alcançar como espécie. Como frutos de uma Natureza que tanto tem sombras, como luz.
Se a metáfora me é permitida, sou “um sobrevivente e estamos em guerra contínua”. E em guerra é sempre necessário haver indíviduos que, face ao inimigo, são capazes de fazer o indizível para o bem dos demais.

RG: Ainda em torno do triunvirato anterior (Lisboa, Alfama, Dez Mulheres) - o tema feminino na pretensa sublimação do género, na forma diabolizante tal como na Idade Média ou o culto e/ou exploração da beleza?

JPS: Sem me querer vincular ou cingir a nenhumas das três vertentes, considero-as a todas válidas na construção estética e narrativa de um filme. Vejo-as como ferramentas (ou convenções) com o seu percurso histórico relevante. E como ferramentas, estão aí para ser usadas – mas, invariávelmente, como um meio e nem tanto como um fim.
A Tale of Lust (2016)
Diria que a Mulher, como potencial personagem, fascinar-me-á sempre mais do que o Homem, porque todos os componentes que poderão ser usados para a construir (ou observar), tornam-se sempre mais complexos, contraditórios, instáveis e surpreendentes no feminino.
O projecto mais abrangente dessas três vertentes que enuncias é talvez O Tempo e Dez Mulheres, que se dedica de forma fugaz, mas incisiva, a criar estudos de personagens que se definem pela sua postura enquanto (e perante a) identidade feminina.
A Tale of Lust (tal como Alfama Monogatari) centra-se mais na perspectiva destructiva da Mulher, em que o desejo e o auto-erotismo são meros passos numa ávida corrida para um ideal improvável.
Em Lisboa Involuntária, a femininalidade é mais vislumbrada do que dissecada. Vista de fora – para onde nós, insuficientes seres masculinos, estamos relegados...  

OF: Sendo que já foste apelidado de “compositor de filmes” e, em minha opinião, reflectindo a tua poesia e um sentido estético muito peculiar, poder-se-á dizer que o erotismo, na tua obra, através da explicitação dos estados do desejo e do prazer, do mundo das sensações, da pele, da entrega, pretende conduzir os espectadores ao encontro com uma dinâmica na qual se vejam confrontados com a verdade da sua sexualidade (no já referido âmbito existencialista).

Overture (2002)
JPS: Não sei até que ponto me estarei realmente a dirigir à sexualidade dos demais naquilo que concebo e realizo. Não tenho a pretensão de conseguir comunicar de forma assim tão abrangente ou diversificada. Por mais que estabeleça sempre um convite a múltiplas interpretações (por deixar o suficiente em aberto, nesse e noutros contextos), tenho perfeita consciência das minhas limitações, como homem e cineasta. Sou limitado nos meus gostos e interesses – apesar da minha diversificada filmografia. Dito isto, o lado “compositor de filmes” contribui para uma consciência do quão longe e fundo a “música certa” nos pode levar...

RG: Que poder exercem os teus filmes sobre ti?  Deixam-se editar, como uma mulher submissa, ou induzem à edição como uma mulher insinuante?


Águas Furtadas e Outras Ausências (2007)
JPS: Posso dizer que já estive perante quase todo o tipo de situação, no que diz respeito a material filmado e prestes a ser editado. Tenho a vantagem de editar os meus próprios filmes (sob o pseudónimo Clara Moura), portanto existe uma pré-edição mental na altura das filmagens – sei sempre se determinado plano ou sequência irá “cortar bem” ou como, face a qualquer dificuldade ou problema, o poderei contornar, mais tarde na edição. Considero isto vital para um trabalho bem sucedido, que não se deixa ficar pelas intenções. Sei que sou melhor realizador por isso. Filmo sempre o essencial e raramente “deito fora” algum plano. Nada disto, no entanto, quer dizer que não hajam surpresas. O ser surprendido dentro de alguma certeza que se julgava ter pode ser algo indescritívelmente aliciante.

OF: Concordas com Llosa quanto afirma que uma sociedade é tão mais primitiva, quanto menos erótica fôr?

Antlers of Reason (2006)
JPS: Sim, claro. Na sua plenitude, o erotismo assume um equilíbrio entre a sugestão, o contexto, a estética e o instinto. A sexualidade só entra para, de certa forma o accionar – correndo, claro, o risco de o extinguir como um fogo fátuo.
Nos meus filmes, outros elementos ajudam sempre a delimitar o território erótico, conquistado pela minha imaginação e povoado pelas fantasias das personagens.
O Cinema é a forma de arte erótica por excelência, pois tem o poder e potencial para centralizar todos estes aspectos e os comunicar, quando no seu melhor através da poesia (quando algo singelo evoca algo maior). No entanto, quando assumidamente mais sexual, a tarefa torna-se mais complexa e o risco de falhar muito maior, porque a imagem, à partida, objectifica.
A minha busca (e desafio que coloco a mim próprio) passa por esse “fio da navalha”. Mesmo numa perspectiva explícita, quando necessária, estar sempre a evocar algum conflito psicológico das personagens. Alguma ambiguidade mais sublime...   

RG: O sexo é temática recorrente nos teus trabalhos. A dominação ou violência sexual podem ser retratadas como forma de arte?

Victim (2011)
JPS: Podem. E a Arte tem de ter a liberdade de o fazer. Existe, claro, a diferença entre o fazê-lo com responsabilidade (e coerência inerente à narrativa ou às personagens) e o explorá-lo com segundas intenções (como a de excitar o próximo e ganhar com isso). Em ambos os casos existe um outro risco acrescido: o de num apurar da estética se acabe por “glamourizar” actos reprováveis.
São, na minha opinião, os contextos em que mais se deve levar em conta a resposta do espectador, mas não deixando que esta nos castre a expressão.
Antlers of Reason (2006)
Entre as cenas que filmei que se enquandram nessa ideia de subjugação ou violência sexual, talvez valhe a pena referir a da longa-metragem Antlers of Reason, que realizei em 2006. Mais ao menos a meio do filme, como ponto de viragem numa relação já de si desigual, a personagem central adormece à espera do amante. A transição visual para um sonho, flashback ou fantasia apresenta-nos uma cena de sexo pouco consensual.  Para adicionar ainda mais ambiguidade, nunca a vemos acordar do suposto sonho e o filme prossegue assumindo a sua vertente mais onírica num crescendo erótico.
Estamos a falar do mais visto e controverso dos meus filmes, mas, curiosamente, foram mais as queixas da parte dos espectadores masculinos, do que femininos. O que me faz concluir que as mulheres são, à partida, mais íntimas da ambiguidade.   

OF: No contexto da psicologia e da psicopatologia, há autores que defendem que, em certos quadros, o erotismo mascara o medo de ser amado e a necessidade de se sentir desejado (confundindo amor com desejo), sendo que, nestes casos, a entrega sexual é de grande intensidade, como forma de procura desesperada de amor. Bataille, por exemplo, na sua descrição do erotismo elimina os aspectos do prazer, do júbilo. Como vês esta interpretação, no âmbito da tua obra?

Uma Curta de Amor (2014)
JPS: Embora me tenham “acusado” sempre, ao longo do meu percurso artístico, de ser, no fundo, um romântico, acho que a maioria dos meus filmes expressam um grande cépticismo para com definições pré-estabelecidas do que é amar e ser amado. Acho que, tanto na Vida como na Arte, o amor romântico e as suas expressões mais carnais são uma armadilha em que nos predispomos sempre cair – quanto mais não seja pelo entulho psicológico e afectivo que todos carregamos como excesso de bagagem.
Na verdade, não tenho grandes certezas em relação ao assunto. Não o procuro descodificar conscientemente, mas sei que expresso muito (e me exponho, talvez, bastante) nos filmes que faço.
Felizmente, tenho a capacidade de amar plenamente, mas sei, por exemplo, que tenho de trabalhar melhor a empatia para com o próximo... Os meus filmes, mesmo que sombrios, ajudam-me a ser uma pessoa melhor – disso, não tenho dúvidas. Mas, não procuram ou contêm respostas concretas, como disse antes.  O que nos traz de volta ao A Tale of Lust: um filme cujos contornos humanos se assumem como mais contundentes por serem imbuídos de uma competitividade feminina. É uma parábola sobre a identidade da mulher. A identidade pretendida, assumida ou conquistada.

RG: És um realizador de Cinema ou um pecador de Cinema?

JPS: O pecado é algo extremamente salutar, a meu ver. Isto porque só passa a ser designado como tal, a partir do momento que envolver uma postura ou acto contraditório de algum conceito ou doutrina criada para nos controlar. Prefiro viver o mais livre possível. E que o meu trabalho seja espelho dessa liberdade de espírito. Portanto, diria: realizador de Cinema, como profissão; pecador de Cinema, como vocação.
A título de curiosidade, se fores ao País de Gales, verás que Cinema se escreve com S...

Streaming (2017)